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Ciclistas

A opinião pública a respeito dos ciclistas é notóriamente polarizada entre quem os vêm como uma irritação, desrespeitosos que não seguem as regras que querem tudo para si; e quem os vê como pessoas como quaisquer outras, quem sabe mais conscientes e positivos para o ambiente. Qual é então a realidade?

Os cromos da caderneta

É pertinente começar por se perguntar: "O que é um ciclista?"

Sabia que em países como os Países Baixos (vulgo Holanda), onde as pessoas tem por habito utilizar a bicicleta no dia-a-dia (para trabalhar e ir ás compras), os ciclistas tendem a não se reconhecer como tal? Somos culturalmente diferente desses países, e ainda assim partilham-se estereótipos sobre ciclistas.

  • Ciclistas de fim-de-semana: Homens de meia-idade que chegando a sábado formam pelotões. Vestem-se a licra e montam em bicicletas que custam mais que o seu carro garantindo que o mesmo não passa.
  • Estafetas: Indianos, brasileiros e qualquer outra nacionalidade que venha disposta a trabalhar por pouco mais que oxigénio. Nunca ouviram falar do código da estrada e são daltónicos à cor vermelha. Apesar disto conseguem chegar com a sua comida tarde e a más horas.
  • "Jovem errante": Pessoas que falam um estranho dialecto, vestem estranhas roupas, portam um estranho cheiro e andam a "sacar cavalinho".
  • Papa-reformas: Geralmente fazem-se acompanhados dos seus fieis chaços a motor, mas também são observaveis em bicicletas mais velhas que a sua existência e a velocidades que garantem uma morte lenta.
Ciclistas de fim-de-semana, lado-a-lado Estafeta

Não temos de concordar com as opiniões nem de ser racistas para constatar que estes são alguns dos estereótipos para "práticamente todos os ciclistas que eu vejo". É razoável concluir que estes preconceitos partem de pessoas que viram muitos ciclistas num destes estereótipos. Não são difíceis de encontrar. Mas será que são estes os ciclistas possíveis do dia-a-dia?

Chegar onde estamos

Em países com uma cultura de ciclismo, é considerado ciclista o atleta que pedala desportivamente. A generalidade dos ciclistas nesses paises são pessoas mundanas, nas suas vestimentas mundanas a levar as suas crianças à escola antes de seguir para o trabalho. Não estão a tentar ser verdes nem atléticas e circulam aos confortáveis 25 km/h. São portanto pessoas "normais" análogas ao nosso automobilista.

É crença comum que os Países Baixos só tem uma cultura de ciclismo por serem terras planas, de tal forma apelativas à bicicleta que a população desenvolveu essa cultura todavia, para lá chegarem, foi necessário mais do que isso. No periodo pós-guerra a Europa central recontruiu as cidades de formas convenientes para o futuro que ai viria: com ruas desenhadas para os automóveis (que até então seriam raros). O que antes seriam calmas zonas residenciais passaram rápidamente a leito para auto-estradas urbanas.

Portugal não experiênciou uma transição subita para o automóvel. Crescemos acostumados a ter cada ver mais automóvel e menos espaço para peões, ciclistas e transportes públicos. É de facto verdade que os Países Baixos são essencialmente planos, no entanto o que deu origem à cultura de ciclismo foi um movimento intitulado Stop de Kindermoord ("Parem de matar crianças") o qual nasceu da perda subita de qualidade das suas cidades, particularmente a segurança das suas crianças. O nome do movimento referencia o aumento mortalidade infantil para o automóvel. Este movimento, uma iniciativa popular, levou os Paises Baixos a ter uma cultura de ciclismo (uma das crises do petróleo também veio em altura conveniente).

Jornal a mencionar o movimento Stop de Kindermoord
Zona em Amsterdão antigamente Zona em Amsterdão há poucos anos Zona em Amsterdão atualmente
Rijksmuseum, 1982, 2009 e 2019 - Frans Busselman; Natyss med; Benoit Brummer

O ritmo comparativamente lento a que Portugal se desenvolveu fez com que a transição fosse menos sentida. Não nos foram tão claros os impactos negativos das cidades orientadas ao automóvel e como tal acabamos com malhas urbanas desenvolvidas para este meio de transporte e sem consideração por meios de transporte alternativo, sejam bicicletas, transportes públicos ou mobilidade pedonal. É normal que sinta que não pode levar as crianças à escola ou ir para o trabalho de bicicleta; que é demasiado distante e perigoso. Muitas vezes é!

Hoje os efeitos da motorização das cidades sentem-se de formas que são incomparáveis. Mudou tanta coisa para bem e para mal que não temos como traçar paralelos com um Portugal que tivesse tido uma maior aposta em meios alternativos; no entanto é concluivel que os Países Baixos (e paises que seguiram a corrente da mobilidade mista) são onde as crianças mais felizes são no mundo[1] em função do espaço em que vivem e da naturalidade que é habitar cidades seguras. Existem também benésses para adultos; os Países Baixos também têm uma mortalidade na estrada muito inferior apesar de uma pior metereologia. Mas será tudo positivo? É exequível?

Praça do Comércio, 1959 Praça do Comércio, Armando Maia Serôdio 1959

Portugal não serve para isso!

É importante pensar se a bicicleta poderia ser viável num Portugal que tivesse sido desenvolvido com ela em mente. Rápidamente se alcança a crença comum que a nossa geografia não é adequada ao ciclismo. Será? A cientista Rosa Félix criou visualizações que nos permitem ver os declives das nossas cidades[2]. Vejamos:

Declives em Lisboa Declives no Porto

O que podemos concluir é que tanto Lisboa como o Porto tem declives demasiado elevados para a bicicleta, sendo estes limitados a uma minoria da cidade. Também podemos observar as principais avenidas apresentam declives leves. Quer isto dizer que, em alguns casos, pode ser viável o uso de bicicleta.

Existe no entanto um aspecto importante a considerar quando se avaliam qualidades. Qualidades são relativas, pertencem a um contexto. Neste contexto as alternativas são viagens pedonais, em transporte público, por táxi ou em outro veiculo pessoal.

Um peão circula entre 4 e 7km/h. Não sendo competitivo nas travessia de uma cidade, é muito competitivo em distâncias inferiores a uma freguesia. Mais: É flexivel, económico e saudável.

Dados de 2022 apontam 13,79 km/h como a velocidade média dos autocarros e elétricos em Lisboa [3]. Os relatórios são claros: a principal causa de lentidão são os veiculos particulares [3]. O principal factor limitante ás velocidades nas cidades não é o meio de transporte mas sim o congestionamento .

Vermelho é para parar

No desrrespeito pelo código da estrada, a regra tendêncialmente violada pelos ciclistas é a não-paragem. Muitos ciclistas ignoram stops e semaforos quando sentem ser seguro avançar. Não estamos em posição de dizer que é seguro cruzar semáforos vermelhos (geralmente não é!), mas podemos observar que a infraestrutura existente numa estrada tem de ser pensada para o veiculo mais inseguro que a pode utilizar, o que tem menos visibilidade, o que causa mais danos, o que trava pior. Somos levados a uma conclusão: As nossas cidades tem as suas limitações ajustadas à do automóvel.

Sinais de stop são sinais de cedência para veiculos que não se acredita serem capazes de parar atempadamente , reservados a situações onde o bom julgamento não chega. Já semáforos são a evolução da solução, para grandes fluxos de veiculos que não se acredita serem capazes de parar atempadamente. Os semáforos são calibrados de acordo com a velocidade deste trafego, afim de permitir sucessões de verdes; o que significa que os semáforos prejudicam fortemente os transportes públicos, bem como os ciclistas que forem incapazes de se manter acima da assistência legal (25km/h). O sistema cria incentivos para que os ciclistas infrinjam a lei.

Se o seu carro tivesse uma quase-garantia de apanhar todos os semaforos num recém-caido vermelho, quem sabe a frustração também o levaria a ser menos hesitante quando vê o amarelo ou mais apressado antes do verde.

Senhor barqueiro, deixe passar

A infraestrutura mais limitante à velocidade nas cidades é assim porque a segurança de um ambiente com automóveis assim o requer. Cidades orientadas a mobilidade mista geralmente não requerem sinais de stop ou semáforos em locais alem de pontos de cruzamento com trafego automóvel.

Os estafetas que tanto se destacam na via pública apostam em bicicletas por um motivo contra-intuitivo: A bicicleta é tanto o meio de transporte mais económico como o mais rápido para a linha de trabalho deles; ainda mais se os semáforos forem ignoráveis com impunidade.

Os demais transportes motorizados ficam aquém do mínimo de 25km/h que uma bicicleta elétrica faz em distâncias limitadas. Em centros urbanos a bicicleta elétrica fácilmente pode ser o meio mais rápido de transporte. Zonas dotadas de ciclovia vêm os ciclistas ultrapassar todo o congestionamento automóvel com plena fluência.

Temos um... dois... dois problemas

Um dos impedimentos ao uso da bicicleta não tem a ver com declives, cansaço, velocidade nem chuva. É algo tão insignificante como a inexistência de lugares de estacionamento seguros. Um veiculo não é fiável se desaparecer a meio do dia. Felizmente começam a surgir os primeiros parques vigiados no centro de algumas cidades (como é o caso dos BiciParks).

Resta então a limitação mais complicada: Dilatamos as cidades para criar estradas e estacionamento. A maioria das pessoas já mora tão longe da cidade que mesmo que queira não consegue ir de bicicleta às suas tarefas do dia-a-dia.

Os suburbios decontrolados são um problema na generalidade do mundo. Alguns paises apostaram em soluções relativamente simples que resultam relativamente bem. Enquanto que o ideal é a não-existência de suburbios, ninguém está em posição de desconstruir freguesias. Uma solução que se destaca é a forte aposta em ferrovia pesada (ie. comboios) dos suburbios até ao centro das cidades aliada a uma forte aposta em ciclovias seguras e segregadas entre os diversos suburbios e a estação mais próxima. Estas estações devem então de ter estacionamento seguro para velocipedes.

Estacionamento bicicletas Leuven - Bélgica, Alexander Van Steenberge, 2022

As nossas politicas de desenvolvimento territorial e infraestruturas pouco favoráveis são o maior impedimento que existe à adoção em massa de bicicletas. Sendo inviáveis para muita gente é expectável que as pessoas que as conseguem utilizar ser sobre-representadas. Noutros países um ciclista não é fundamentalmente diferente de um peão ou de um automobilista.

Não são os ciclistas que são problemáticos, são as politicas nacionais que fazem com que um ciclista tenha muitas dificuldades em não ser problemático, até pela sua segurança.

Mas... mas... mas...

As bicicletas tem uma conotação social negativa, principalmente por entre as gerações mais antigas e quando ideologia se impõe é difícil ver razão. São vistas como uma coisa de pobre, e você não quer ser pobre! Atente bem nos seus cinco apelidos e continue a pensar em quão admirável é vangloriar-se à Micaela e ao Eduardo que você anda de Bê Éme. O Holandês, o Alemão, o Dinamarquês e o Norueguês são mentalmente pobres. Podem ter algumas vezes mais dinheiro do que o menino mas não têm o seu Bê Éme de assentos azuis em pele de golfinho.

Não existe advocacia para extinguir os carros. Ninguém acredita que tudo pode ser feito por bicicletas e transportes públicos, tal como não pode ser tudo feito por carros e isto não os impede de ser úteis para algumas coisas. As bicicletas são úteis para algumas coisas e podem ser muito mais úteis se a nossa sociedade o permitir.

Fontes

Caso de estudo: Quinta do Conde

Enquanto exercício veja-se um cenário onde a mobilidade ciclável não tem motivos para não ser viável.

A Quinta do Conde é uma vila do distrito de Setúbal. Tem perto de 30 mil habitantes confinados a um pequeno circulo com 2 quilometros de raio. Pouco alem da sua circumferência dista uma estação ferroviária ligada a Lisboa. Comboios partem em intervalos de 10 minutos. Apelativo, não?

Muita da população da Quinta do Conde utiliza este comboio diáriamente, sendo o carro uma forma popular para chegar ao comboio. A estação está equipada com dois parques de estacionamento pagos que se encontram esgotados. Os 800 metros de bermas que precedem a estação são estacionamento sujeito a reboque e implicam caminhar ao longo de uma estrada sem passeios. Automobilistas aqui parqueados caminham durante 5 a 15 minutos por dia.

Situação da Quinta do Conde Quinta do Conde, OpenStreetMap

Esta vila é apróximadamente plana pelo que bicicletas assistidas vão da casa mediana até ao comboio em apróximadamente 10 minutos bem como a qualquer serviço da vila em apróximadamente 5 minutos.

Existem dois autocarros que circulam entre a vila e a estação, ambos mais lentos que uma bicicleta assistida. Da casa mediana, levam aproximadamente 20 minutos em hora de ponta mais a deslocação à paragem, espera e incerteza.

As ruas nesta vila são sobredimensionadas e tem espaço abundante e relativamente seguro salvo no troço comum de acesso à estação onde disparidade de velocidades cria insegurança. Este troço também é muito vulnerável a engarrafamentos.

O número de pessoas que pedala desta vila para este comboio é um erro de arredondamento, bizarro para este que é o meio de transporte mais rápido. Até que medidas simples sejam implementadas é inviável utilizar a bicicleta em massa. Esta população gasta o seu tempo em transito, aguardando a solução esperada: um parque de estacionamento maior e mais vias de transito quando o problema de mobilidade desta vila poderia estar solucionado mais rápidamente e com menos recursos.

A adoção em massa também permite justificar investimentos como uma ponte ciclável. Esta permitiria uma redução de 5 minutos na viagem e tornaria o caminho médio ainda mais plano; adequado a bicicletas não assistidas. Se esta mesma ponte também levasse autocarros, também estes seriam substâncialmente mais rápidos. (Foi um plano existente)

Poucas localidades dão a facilidade de análise que esta dá. Contida e com ferrovia à porta. Existem sítios onde uma bicicleta é má ideia. Nesta localidade existirão dias em que uma bicicleta é uma má ideia; e nesses dias existirão autocarros.